quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Ψ os deuses pintam borboletas

"Antônio,
os deuses pintam borboletas,
mas nós sabemos como
homens sonham e sangram.
(...) Existe a solidão ... A dor existe.

Perdoa-me a tristeza,
como se fosses meu pai,
e não meu filho.


(...) Como um parceiro ... num segredo,
assim o corpo se vai vestindo de amor.
Assim o corpo se deita na tristeza.
Assim o tempo recolhe as flores, às braçadas."
(Alberto da Costa e Silva - A Um Filho que fez Dezoito Anos)

 
Pois a vida nos impulsiona a seguir, apesar de tudo. Ela concede a cada dia um novo conflito, pede um desvio da rota, uma escolha, um outro olhar ...
Jung refere: "Por detrás do cruel destino humano se esconde algo semelhante a um propósito secreto." [...] 

Ψ Fatima Vieira - Psicóloga Clínica

sábado, 22 de novembro de 2014

Poeta Manoel de Barros

"O tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Para não morrer eis a ciência da poesia: Amarrar o Tempo no Poste! E respondo mais: dia que estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste!" 
(Manoel de Barros -  19/12/1916 -13/11/2014)


Ψ Fatima Vieira - Psicóloga Clínica

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ψ A Difícil Realidade da Criança Autista


*Define-se o autismo como uma síndrome (sinais e sintomas), provenientes de diversas causas, caracterizado principalmente pelo isolamento social, rituais e movimentos estereotipados, bem como dificuldades na linguagem e comunicação, acomete mais os meninos.
*A criança vive num universo próprio, manipula os objetos sem nenhuma intenção construtiva real e nem tem valor social significativo para ela.

*Nos relacionamentos pessoais não estabelece uma comunicação de interesse, evitando o contato visual. São relações fragmentárias, ela até escolhe um companheiro, mas não espera dele nem participação e nem trocas.

*Possuem aptidões em  certos campos, facilidade em testes de acoplamento, ordenação de objetos ou de  formas em grandeza decrescente. Possuem uma certa percepção acurada, ainda que, algumas vezes demasiado focalizada. Uma certa planificação num campo restrito, que perturba o todo, por conta da sua necessidade constante de imitar e reproduzir gestos repetitivos.

*O autismo é uma síndrome bem difícil de ser diagnosticada por ter variações, níveis, gravidade e manifestações diferenciadas, possível   de  ser   confundida   com   outras   psicoses.

*É um   transtorno  que   expõe   uma   fragilidade psíquica e orgânica capaz de confundir  o olhar clínico mais experiente. Os sintomas autísticos se confundem e se misturam com distúrbios neurológicos, sensoriais e deficiências intelectuais, sendo alguns de origem genética.

*Os esquizofrênicos mais gravemente atingidos, os que não têm mais contato com o mundo externo, vivem num mundo que lhes é próprio. Qualquer mudança é uma ameaça.


*Fecham-se com seus desejos e aspirações, ou se preocupam apenas com os avatares e suas ideias de perseguição; afastam-se o mais possível de todo contato com o mundo externo. Preferem lidar com objetos e evitam contato com pessoas.

*A essa evasão da realidade, acompanhada ao mesmo tempo pela predominância absoluta ou relativa da vida interior, chamamos de autismo. (Bleuler e Kaufmann, 1966).
 


*Bleuler (1911), introduziu o termo “autismo”, na tentativa de abarcar a perda de contato com a realidade juntamente com a permanência em um modo de viver voltado para si mesmo, que neles identificava.

*Freud (1923), referia autoerotismo como uma perturbação na vida erótica destes pacientes.


 *Kanner (1943), já utiliza um quadro específico de adoecimento infantil, e não mais do sintoma de esquizofrenia adulta.

*Ajuriaguerra (1991), refere que essa  descrição do autismo por Kanner marcou o início da história atual das psicoses infantis, já que as primeiras tentativas de diagnosticá-las apenas faziam o translado do quadro semiológico do adulto.

 
*Os esquizofrênicos mais gravemente atingidos, os que não têm mais contato com o mundo externo, vivem num mundo que lhes é próprio.
A essa evasão da realidade, acompanhada ao mesmo tempo pela predominância absoluta ou relativa da vida interior, chamamos de autismo. (Bleuler apud Kaufmann, 1966).

 
*Segundo José Raimundo Facion (2007) o autismo é  um  subtipo  dos  Transtornos Invasivos  do  Desenvolvimento (TID),  “que  apresentam  em  comum  prejuízo  severos   e  invasivos   nas    diversas   áreas   do  desenvolvimento (dificuldades relativas    ás  habilidades    de   interação    social  recíproca    e  de   comunicação ou  presença  de comportamentos estereotipados e movimentos repetitivos)”. 


*O autismo sofreu várias modificações em sua definição, nas classificações de doenças mentais seguindo critérios das DSMs (classificações das doenças mentais da Associação Psiquiátrica Americana)  e as CIDs (Código Internacional de Doenças, OMS).

*Em 1968, a DSM II incluía o autismo no termo “esquizofrenia de início na infância”; e na década de 1970, passou a avaliá-lo como deficiência cognitiva (Cavalcanti e Rocha, 2001).


*Em 1980, a DSM III mudou mais uma vez; distinguiu-o da esquizofrenia infantil.

*Em 1995, a DSM IV passou a descrevê-lo como uma síndrome comportamental com várias etiologias.
*CID 10 (1993), já não julgava que o autismo fosse uma psicose, identificando-o como um “distúrbio global do desenvolvimento”.

 
*Constata-se que além do fato de haver várias abordagens dentro de um mesmo saber, existem quadros muito variados, com múltiplos fatores convergindo para a determinação de cada um deles, como indica a própria característica sindrômica. 

 
*Assim, um único ponto de vista não consegue abarcar o tema, e tomar em consideração um lado da questão não elimina os outros.  Considerar, por exemplo, fatores relativos à interação humana não exclui uma falha na condição física.


*Em 1997, devido à impossibilidade consensual, o National Center for Clinical Infant Program (NCCIP) propôs novas categorias.
Essa categorização destaca transtornos que apresentam as mesmas dificuldades descritas nos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, manifestos em bebês e crianças pequenas, mas que evidenciam uma certa capacidade de manter relações afetuosas e interativas com seus cuidadores, lado a lado com um progresso razoável em seu desenvolvimento cognitivo. São então denominados “Transtornos Multissistêmicos do Desenvolvimento”.

*O NCCIP alerta que “quando identificadas e tratadas apropriadamente, muitas crianças com ‘aspectos autísticos’ desenvolvem relacionamentos de afeto e intimidade” (1997).


*Winnicott refere o autismo  como uma questão de imaturidade emocional, que pode acontecer quando o amadurecimento da criança é interrompido  pela inadequação ou insuficiência do ambiente perante suas necessidades.

*Essa compreensão pode evitar que o autismo seja tomado como uma doença (nos termos da psiquiatria), uma entidade nosológica, que muitas vezes reduz a importância da relação ambiente indivíduo.

 
* Segundo Winnicott,
“Qualquer um dos muitos elementos descritivos pode ser examinado separadamente e pode ser encontrado em crianças que não são autistas, e mesmo em crianças que são chamadas de normais e sadias”.
* E ainda, “para cada caso de autismo que encontrei na minha prática, encontrei centenas de casos em que havia uma tendência que foi compensada, mas que poderia ter produzido o quadro autista” (1966).

 *Referia Winnicott (1950),  que não se pode deixar de reconhecer o “acaso”, dentre outros fatores, “há as crianças cujos pais não foram bem sucedidos e precisamos lembrar que o fracasso pode não ser absolutamente por falha deles". Pode ser por um erro médico, ou por uma fatalidade (...) e os pais podem carecer de recursos para lidar com o imprevisto, e o suporte do ambiente próximo será fundamental.

*Segundo Winnicott, no autismo a criança produziria uma organização defensiva, no sentido de adquirir uma invulnerabilidade diante da ameaça de voltar a ser tomada por uma agonia anteriormente sentida, devido a uma “invasão” ou falha do ambiente para com ela, na fase de extrema dependência do início de sua vida.



*Sem a defesa, a criança ver-se-ia diante “de uma quebra da organização mental da ordem da desintegração, despersonalização, desorientação, queda para sempre e perda do sentido do real e da capacidade de se relacionar com os objetos”, que para Winnicott caracterizavam as agonias impensáveis (...)  a criança terá somente seu recurso mais primitivo para alcançar a invulnerabilidade: o isolamento. 
 
*As atividades da criança autista têm uma especialização monótona, sem a presença de fantasias.


*O apego a certos objetos, a fixação, o balanceio, os comportamentos repetitivos, a evitação de qualquer contato, podem ser utilizados pela criança muito precocemente para defender-se da agonia engendrada pela falha na relação primitiva de identificação primária.

*Uma agonia que acontece não propriamente por uma questão de intensidade da falha, mas pelo momento de seu acontecimento. 

 
*Para Winnicott, (1962) “quaisquer que sejam os fatores externos, é a visão que o indivíduo tem do fator externo o que conta”.


*É importante salientar que em uma fase bem precoce, o que se chama de “visão” de um “fator externo”, é na realidade do bebê um sentimento subjetivo de estranheza, de algo que não deveria estar acontecendo, visto que o bebê ainda não compreende razões e tampouco percebe objetivamente o que é interno e externo.

 
*Com esse modo de pensar o autismo, Winnicott acreditava que não se poderia avançar muito na compreensão de sua etiologia, e consequentemente na prevenção, se não houvesse coragem de tocar em questões extremamente difíceis e delicadas.


*Uma dessas questões refere-se ao ódio inconsciente da mãe em relação à criança, oculto por formações reativas tornando-se, mais difícil de ser enfrentado pela criança.
(Mecanismo de Defesa descrito por Freud, através da Formação Reativa, alguns pais são incapazes de admitir um certo ressentimento em relação aos filhos, acabam interferindo exageradamente em suas vidas, sob o pretexto de estarem preocupados com seu bem-estar e segurança).

* Winnicott (1967), em seu texto A etiologia da esquizofrenia da criança em termos do fracasso adaptativo, aponta o fator do ódio inconsciente materno, essenciais para o estudo do autismo. 


*O autor fala ainda da organização de defesa sofisticadíssima do autismo, promovendo a invulnerabilidade da criança, que deixa de sofrer, ficando o sofrimento com os pais;

*A ênfase no afeto inconsciente materno como fator etiológico já era citada por Winnicott no texto The only child (1928), ele dizia: “a influência mais importante sobre a vida de uma criança é a soma das ações e reações impensadas da mãe, e de outras relações e amigos; não são as ações refletidas que têm os principais efeitos”.


*A mãe que odeia e ao mesmo tempo demonstra uma ternura especial: "O desejo de morte reprimido em relação ao bebê”, ódio inconsciente, oculto por formações reativas, que fica “além da capacidade de manejo do bebê”.

*Ou seja, as crianças parecem ser capazes de lidar com o fato de serem odiadas e isto é simplesmente uma maneira de dizer que podem enfrentar e fazer uso da ambivalência que a mãe sente e demonstra. 


*O que elas não podem jamais usar satisfatoriamente em seu desenvolvimento emocional é o ódio reprimido e inconsciente da mãe, que apenas encontram em suas experiências de vida, sob a forma reativa. 

*Winnicott confessa que gostaria muito de dizer a todo mundo que a atitude dos pais não tem qualquer influência no surgimento do autismo, ou da delinquência, ou de outros distúrbios do desenvolvimento.



*Mas ele dizia que não podia, e se pudesse, seria o mesmo que dizer “que os pais não desempenham nenhum papel quando as coisas vão bem”. 

*Segundo ele, “temos de procurar todas as causas de qualquer transtorno, e também da saúde, e não podemos esconder coisas por medo de magoar alguém. Entretanto, “ isso é muito diferente de dizer para uma mãe ou um pai: ‘Isso é culpa sua’. 

*Uma coisa é culpa e outra é responsabilidade. É preciso analisar a etiologia, pois muitas vezes, “o dano foi feito sem querer e sem maldade. Simplesmente aconteceu”. 

*Por reconhecer a importância da adequação do ambiente para que o amadurecimento da criança se dê de forma satisfatória, Winnicott apontava os cuidados que o próprio ambiente, em particular a mãe, demandam. 

*Para ele, mãe e bebê inicialmente precisam que seu ambiente próximo promova recursos que levem a mãe a desenvolver confiança em si própria.

*Concordo particularmente com as abordagens psicodinâmicas que enfatizam aspectos qualitativos do desenvolvimento humano, respeitando as diferenças, a capacidade e o ritmo de cada criança. 

*(Dedico esta postagem a minha paciente K.B.P, 'Síndrome de Asperger', que foi avaliada na Perícia Médica em 2013, Exame Pré Admissional, passou em dois concursos públicos mas não foi considerada apta, tenha minha admiração e carinho).

Bibliografia: Psychê - Ano VIII - nº 13 - São Paulo -  jan - jun/2004 - p. 43-60:  Conceição A. Serralha de Araújo.
AJURIAGUERRA, J.; MARCELLI, D. Manual de psicopatologia infantil . Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
WINNICOTT, C.; SHEPHERD, R.; DAVIS, M. Explorações psicanalíticas : D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes  Médicas, 1994.
WINNICOTT, D.W. (1945). Desenvolvimento emocional primitivo. In: ___.Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.  ________. (1950). Crescimento e desenvolvimento na fase imatura. In: ___. A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.

 ________. (1952). Psicose e cuidados maternos. In: ___ .A família e o desenvolvimento do indivíduo . Belo Horizonte: Interlivros, 1980. ________. (1962). A integração do ego no desenvolvimento da criança. In: ___. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
 ________. (1966). Autismo. In: SHEPHERD, Ray; JOHNS, Jennifer e ROBINSON, Helen T. 
D. W. Winnicott : pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
Ψ Fatima Vieira - Psicóloga Clínica

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Ψ O Desassossego de Fernando Pessoa

*Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros ...
Mathias Stomer
*(...) Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar,
 tanto vale amar ao pequeno tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

*Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível.

*Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito.


*Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa.

*No fundo obscuro da minha alma, invisíveis forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito.

*Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar.


*Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama.

*Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum.


*Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos.

*Tive receio de endoidecer. O meu corpo era um grito latente.

*O meu coração batia como se falasse.

*Com passos largos e falsos percorri, descalço, o comprimento pequeno do quarto, e a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta ao canto para o corredor da casa.


*(...)  Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de gratidão das coisas.

*Porque essa luz, esse verdadeiro dia, libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada.


*Ah, que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura dela!

*Quase que choro, vendo clarear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita, ...  o meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa a conhecer a segurança de não sentir.

*(...) Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inércia.


*Nem olho o dia, para ver o que ele tem que me distraia de mim, ...  e ignoro com as costas dobradas se é sol ou falta de sol o que está lá fora na rua subjetivamente triste, na rua deserta onde está passando o som de gente.

*Ignoro tudo e dói-me o peito. Parei de trabalhar e não quero mexer-me daqui.

*Estou olhando para o mata-borrão branco sujo, ... Uns desenhos de nada, feitos pela minha desatenção.

*Olho a tudo isto como um aldeão de mata-borrões, com uma atenção de quem olha novidades, com todo o cérebro inerte por detrás dos centros cerebrais que promovem a visão.

*Tenho mais sono íntimo do que cabe em mim.

*E não quero nada, não prefiro nada, não há nada a que fugir.

*Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida.

*Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.

*Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que  com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.


*Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar.

*Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar ...


*Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante.

*A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta...

*Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto.

*Extravaso horror de tudo. Entonteço de senti-los.

*E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agoniza.

*Não representante por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.

*Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, isolados ou unidos formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida.

*O escritório torna-se uma página com palavras de gente; a rua é um livro; 


*Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam.

*Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.

*Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas íntimas.

*( ... ) Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio


*Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.

*A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira.

*Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que ouvesse recebido uma fortuna, 


*a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

*Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!

*Certas horas que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas.

*Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções desejadas.

*Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações.

*Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo.

*Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais;


*mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá atenuado na minha sonolência de viver.

*Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. 

*(...) Os teus colares de pérolas falsas amaram comigo as minhas melhores horas.

*Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes.

*Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino?

*Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos.

*A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era transparente de silêncios. 


*Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura. 

*Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos.

*Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.

*Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. 


*Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.

*Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.

*Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.


 O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa  
Ψ  Fatima Vieira - Psicóloga Clínica

sábado, 8 de novembro de 2014

(...)


Tudo é vivo e tudo fala ao nosso redor,
embora com vida e voz que não são humanas,
mas que podemos aprender a escutar,
porque muitas vezes essa linguagem secreta
ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério.

                                                               (Cecília Meireles)