sábado, 26 de janeiro de 2013

Ψ JUNG - Sincronicidade I Ching


- Sentado no chão do pátio, à sombra de uma pereira centenária, o sábio lança varetas e consulta os oráculos do I Ching.

- Dia após dia, durante horas e horas, sem se cansar.

 - A cena descrita acima não se passa na China antiga, mas em um pequeno castelo na cidadezinha de Bollingen, na Suíça, durante o verão de 1920.

- O sábio é o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, um pioneiro no estudo do inconsciente humano no século 20.


Em 1920 começou a lançar as varetas proféticas. Foi amor à primeira consulta: "Encontrei relações cheias de sentido entre o que diziam os textos dos hexagramas e meus próprios pensamentos - fato que eu não conseguia explicar a mim mesmo", (Jung em Memórias, Sonhos, Reflexões).


 - Jung, acreditava que a mitologia e as religiões da Antiguidade podiam ajudar o homem a conhecer melhor sua própria alma.



- O fascínio do I Ching levou Jung a formular a teoria da "sincronicidade", segundo a qual, em determinadas ocasiões, paralelos emergem entre o mundo da mente e  o mundo real - paralelos que, segundo ele, a civilização ocidental chama de "mera coincidência".
- Para Jung, a coincidência não deve ser desprezada: o acaso, muitas vezes, faz sentido. A indicação de um determinado hexagrama pelo lançamento de varetas ou moedas pode parecer algo aleatório, mas também pode iluminar elementos ocultos no inconsciente de quem faz a consulta.

-  Mesmo quando o sentido das frases é ambíguo, o simples ato de refletir sobre elas pode levar o paciente ao autoconhecimento.


-  [...] "Não sendo um sinólogo, meu prefácio ao LIVRO DAS MUTAÇÕES terá que ser um testemunho da experiência pessoal com esse grande e único livro".

- Se o significado do Livro das Mutações fosse de fácil apreensão, a obra não precisaria de um prefácio.
- ...  há tantos pontos enigmáticos em seu conteúdo que os estudiosos ocidentais tenderam a considerá-lo como um conjunto de “fórmulas mágicas” que, ou seriam abstrusas demais para serem inteligíveis, ou careceriam de todo valor.

- Wilhelm, com auxílio dos seus estudos de filosofia e orientação do sábio  Lao-Nai-hsüan iniciou o estudo do i ching.

-  A apreensão do sentido vivo do texto dá à sua versão do I Ching uma profundidade de perspectiva que um conhecimento exclusivamente acadêmico da filosofia chinesa nunca poderia proporcionar.

- ... Tenho uma enorme dívida para com Wilhelm pelo esclarecimento que trouxe à complicada problemática do I Ching e também pelas intuições relativas à sua aplicação prática
".

- ...  Por mais de 30 anos, interessei-me por essa técnica oracular, ou método de explorar o inconsciente, que pareceu-me de excepcional significado.

- De modo a poder compreender de que trata esse livro, é indispensável deixar de lado certos preconceitos da mente ocidental.

- É curioso que um povo tão dotado e inteligente como o chinês nunca tenha desenvolvido o que chamamos ciência.

- Nossa ciência, entretanto, é baseada no princípio da causalidade, o qual é considerado uma verdade axiomática. Mas uma grande mudança está ocorrendo em nosso ponto de vista. O que a “Crítica da Razão Pura” de Kant não conseguiu, está sendo realizado pela física moderna.

- Os axiomas da causalidade estão sendo abalados em seus fundamentos: sabemos agora que o que denominamos leis naturais são meramente verdades estatísticas que supõem, necessariamente, exceções.

- Ainda não nos apercebemos que necessitamos do laboratório com suas decisivas limitações para demonstrar a validade invariável das leis naturais. Se deixarmos a natureza agir, veremos um quadro muito diferente: o acaso vai interferir total ou parcialmente em todo o processo, tanto assim que, em circunstâncias naturais, uma seqüência de fatos que esteja em absoluta concordância com leis específicas constitui quase uma exceção.


- A mente chinesa, como a vejo trabalhando no I Ching, parece preocupar-se exclusivamente com o aspecto casual dos acontecimentos.

- O que chamamos de coincidência parece ser o interesse primordial desta mente peculiar e o que cultuamos como causalidade passa quase desapercebido.

- Devemos admitir que há muito a dizer a respeito da imensa importância do acaso.

- Uma quantidade incalculável do esforço do homem visa a combater e limitar os incômodos ou perigos representados pelo acaso.

- Considerações teóricas de causa e efeito freqüentemente parecem fracas e pobres em comparação com os resultados práticos do acaso.

- É correto dizer que o cristal de quartzo é um prisma hexagonal. A afirmação é verdadeira quando se considera um cristal ideal; entretanto, na natureza não se encontram dois cristais exatamente iguais, ainda que todos sejam inequivocadamente hexagonais. A forma concreta, no entanto, parece interessar mais ao sábio chinês que a forma ideal.
- O emaranhado de leis naturais que constitui a realidade empírica é mais significativo para ele que uma explicação causal de fatos que, além disso, em geral devem ser separados uns dos outros para que possam ser adequadamente tratados.

- A maneira como o I Ching tende a encarar a realidade parece não favorecer nossa maneira causal de proceder.
-  O momento concretamente observado apresenta-se à antiga visão chinesa, mais como um acontecimento fortuito que o resultado claramente definido de um concordante processo causal em cadeia.

- A questão que interessa parece ser a configuração formada por eventos casuais no momento da observação e de modo nenhum as hipotéticas razões que aparentemente justificam a coincidência.

- Enquanto a mente ocidental cuidadosamente examina, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão chinesa do momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois tudo compõe o momento observado.

- Assim ocorre quando são jogadas as três moedas, ou quando se contam as 49 varetas; esses detalhes casuais entram no quadro do momento de observação e fazem parte dele – uma parte que para nós é insignificante, porém para a mente chinesa é de suma importância.

- Seria para nós uma afirmação banal e quase sem sentido (pelo menos à primeira vista) dizer que tudo que acontece num determinado momento tem inevitavelmente a qualidade peculiar àquele momento.

- Esse não é um argumento abstrato mas, ao contrário, muito prático.
- Alguns especialistas são capazes de determinar só pelo aspecto, gosto e comportamento de um vinho a sua procedência e o ano de sua origem.


- Existem conhecedores de antigüidades que podem afirmar com extraordinária precisão a data, o lugar de origem e o autor de um “objet d´art” ou de um móvel, simplesmente olhando-os.

- Existem astrólogos que podem dizer a uma pessoa, sem nenhum conhecimento prévio, a data de seu nascimento, qual era a posição do sol e da lua, e qual o signo que se encontrava sobre o horizonte no momento de seu nascimento. Diante de tais fatos é preciso admitir que os momentos podem deixar marcas duradouras.

- Em outras palavras, quem quer que tenha inventado o I Ching estava convencido de que o hexagrama obtido num determinado momento coincidia com esse momento tanto em qualidade quanto em tempo.
- Para ele o hexagrama era o intérprete do momento no qual era tirado – mais que as horas do relógio ou as divisões de um calendário -, uma vez que o hexagrama era compreendido como sendo o indicador da situação essencial que prevalecia no momento de sua origem.

- Essa suposição envolve um certo princípio curioso que denominei sincronicidade, conceito este que formula um ponto de vista diametralmente oposto ao da causalidade. A causalidade enquanto uma verdade meramente estatística não absoluta é uma espécie de hipótese de trabalho sobre como os acontecimentos surgem uns a partir dos outros, enquanto que, para a sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores.
- O pensamento tradicional chinês apreende o cosmos de um modo semelhante ao do físico moderno, que não pode negar que seu modelo do mundo é uma estrutura decididamente psicofísica. O fato microfísico inclui o observador tanto quanto a realidade subjacente ao I Ching abrange a subjetividade, isto é, as condições psíquicas dentro da totalidade da situação momentânea. Assim como a causalidade descreve a seqüência dos acontecimentos, a sincronicidade, para a mente chinesa, lida com a coincidência de eventos.

- O ponto de vista causal nos relata uma dramática história sobre como D chegou à existência: originou-se de C que existia antes de D, e C, por sua vez, teve um pai, B, etc. Por outro lado, a visão da sincronicidade tenta produzir uma representação igualmente significativa da coincidência. Como é que A, B, C, D, etc. aparecem todos no mesmo momento e no mesmo lugar? Isso acontece, em primeiro lugar, porque os eventos físicos A e B são da mesma qualidade dos eventos psíquicos C e D, e ainda porque todos são intérpretes de uma única e mesma situação momentânea. Assume-se que a situação representa um quadro legível ou compreensível.

- Os 64 hexagramas do I Ching são o instrumento pelo qual se pode determinar o significado de 64 situações diferentes, porém típicas. Essas interpretações são equivalentes a explicações causais.

- A conexão causal é estatisticamente necessária e pode, portanto, ser submetida à experiência. Uma vez que as situações são únicas e não podem ser repetidas,
não parece ser possível, em condições normais, realizar experiências com a sincronicidade.
- No I Ching, o único critério de validade da sincronicidade é a opinião do observador de que o texto do hexagrama eqüivale a uma interpretação fiel de sua condição psíquica.

- Supõe-se que a queda das moedas ou o resultado da divisão do conjunto de varetas de caule de milefólio é o que necessariamente deve ser uma “situação” dada, já que qualquer coisa que aconteça naquele momento pertence a ele como parte indispensável do quadro.
- Se um punhado de fósforos é jogado no chão, eles formam o padrão característico daquele momento. Porém, uma verdade tão óbvia como essa só revela seu caráter significativo se for possível ler o padrão e verificar sua interpretação, em parte pelo conhecimento, do observador, da situação objetiva e da subjetiva e, em parte, pelo caráter dos fatos subsequentes.


 - Obviamente esse não é um procedimento que atraia uma mente crítica, acostumada à verificação experimental de fatos ou à evidência factual. Mas para alguém que goste de olhar o mundo segundo a perspectiva da antiga China, o I Ching pode exercer alguma atração.  


  O  I Ching operando:
- (...)  Com esse propósito realizei uma experiência rigorosamente de acordo com a concepção chinesa: personifiquei, de certo modo, o livro, perguntando seu julgamento sobre sua situação atual, isto é, sobre minha intenção de apresentá-lo à mente ocidental.  

   - Utilizei o método de moedas e a resposta obtida foi o hexagrama 50 - Ting, O CALDEIRÃO.

- De acordo com a maneira como foi formulada minha pergunta, deve-se entender o texto do hexagrama como se o próprio I Ching fosse a pessoa que fala.

- Assim, ele descreve a si próprio como um caldeirão, isto é, como um recipiente de ritual contendo comida preparada. Deve-se entender comida, aqui, como alimento espiritual.


- Wilhelm diz a respeito: “O Ting, enquanto um utensílio pertencente a uma civilização refinada, sugere o cuidado e a alimentação dos homens capazes, o que resulta em benefício da nação…"
- Aqui a cultura atinge sua culminância na religião. O Ting serve para a oferenda de sacrifícios a Deus. Os mais elevados valores terrenos devem ser oferecidos em sacrifício a Deus…

- A suprema revelação de Deus encontra-se nos profetas e nos santos. Venerá-los é, na verdade, venerar a Deus. Os desígnios de Deus, manifestados através deles, devem ser aceitos com humildade”.


- Em meu hexagrama os “agentes espirituais” enfatizaram com um nove as linhas na segunda e terceira posições. Diz o texto:
Nove na segunda posição significa:
Há alimento no Ting.
Meus companheiros têm inveja,
mas nada podem contra mim.
Boa fortuna.


Assim, o I Ching diz de si mesmo: “Eu contenho alimento (espiritual)”. Como a participação em algo grande sempre desperta inveja, o coro dos invejosos é parte da cena. Os invejosos querem despojar o I Ching daquilo que ele possui de grandioso, isto é, procuram roubar ou destruir o seu significado. Mas essa hostilidade é em vão. Sua riqueza de significado está assegurada, isto é, o I Ching está seguro de suas positivas conquistas, as quais ninguém lhe pode tirar.  


O texto continua:
Nove na terceira posição significa:
A alça do Ting está alterada.
Ele é impedido em suas atitudes.
A gordura do faisão não é comida.
Quando a chuva cair, o remorso desaparecerá.
A boa fortuna virá ao final.

A alça (em alemão Griff) é a parte pela qual o Ting pode ser segurado (gegriffen). Portanto, significa o conceito (Begriff) que se tem do I Ching (o Ting). No decorrer do tempo, esse conceito aparentemente mudou, de modo que hoje já não podemos apreender (begreifen) o I Ching. 

Assim, “ele é impedido em suas atitudes”. Já não somos mais amparados pelo sábio conselho e pela profunda visão intuitiva do oráculo; por isso, não mais encontramos nosso caminho através das complexidades do destino e da escuridão de nossa própria natureza. Já não mais se come a gordura do faisão, isto é, a melhor e mais rica parte de um bom prato.

- Mas quando, finalmente, a terra sequiosa novamente receber a chuva, isto é, quando esse estado de carência for superado, o “remorso”, isto é, a tristeza pela perda da sabedoria tiver cessado, virá a tão esperada oportunidade. Wilhelm comenta: “Isso descreve alguém que, em meio a uma cultura muito desenvolvida, encontra-se numa posição em que não é notado nem reconhecido. Isso é um grande obstáculo à sua atuação”. O I Ching parece estar lamentando que suas excelentes qualidades não sejam reconhecidas e portanto permanecem inexploradas. Conforta-se com a esperança de recuperar, em breve, o reconhecimento.

- A resposta dada, nessas duas linhas de destaque, à pergunta que formulei ao I Ching não requer nenhuma sutileza especial de interpretação, nenhum artifício, nenhum conhecimento incomum. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso pode compreender o significado da resposta; é a resposta de alguém que tem uma boa opinião sobre si próprio, mas cujo valor não é pela maioria reconhecido, nem sequer amplamente conhecido. 


- Quem responde tem uma noção interessante sobre si mesmo: se vê como um recipiente no qual as oferendas ao sacrifício são trazidas aos deuses, a comida do ritual destinada à sua alimentação. Concebe a si próprio como um utensílio de culto destinado a prover o alimento espiritual para os elementos ou forças inconscientes (“agentes espirituais”) que foram projetados como deuses – em outras palavras, para dar a essas forças a atenção que elas necessitam para desempenhar seu papel na vida do indivíduo. Na realidade, esse é o significado original da palavra “religio” – uma cuidadosa observação e consideração (de ”relegere”) do numinoso.

- O método do I Ching leva realmente em consideração a oculta qualidade individual existente nas coisas e nos homens e também no nosso próprio inconsciente.


"... aqueles a quem a ele não agradar não têm por que usá-lo, e quem se opuser a ele não é obrigado a achá-lo verdadeiro. Deixem-no ir pelo mundo para benefício dos que forem capazes de discernir sua significação." (Jung)

Fatima Vieira - Psicóloga Clínica

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