- Quem nunca roubou não vai me entender.
- E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender.
- Eu, em pequena, roubava rosas ...
- Começou assim: Numa dessas brincadeiras de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
- Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo.
Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era.
- E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim.
- Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia.
- No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha.
- Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão.
- Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua.
- Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas... somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo. Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
- E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa.
- E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
- O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
- Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
- Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
- Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.
"Cem Anos de Perdão" - Clarice Lispector
fotografia: Rosane Vieira/ Jardim de Itatiba
Nenhum comentário:
Postar um comentário