sexta-feira, 12 de novembro de 2010

"... é que narciso acha feio tudo que não é espelho." (Caetano Veloso)


A LENDA: Há milhares de anos atrás, na antigüidade mais remota do povo grego, nasceu Narciso, filho de Céfiso, com a ninfa Liríope. No dia do seu nascimento, o adivinho Tirésias vaticinou que Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse a sua própria imagem. Narciso cresceu com os traços e as formas de um deus. Assediado pelas ninfas permanecia indiferente as paixões que despertava. Eco a ninfa mais linda apaixonou-se pelo belo Narciso que a desprezou... Não suportando a dor da rejeição, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos das montanhas. Evitava o contato com os outros seres, e não se alimentava mais, seu corpo foi definhando, seus ossos se transformaram em rocha. Nada restou além da sua voz. Eco, porém, continua a responder a todos que a chamam, e conserva seu costume de dizer sempre a última palavra. Não foi em vão o sofrimento da ninfa, pois do alto, do Olimpo, Nêmesis vira tudo o que se passou. Como punição, condenou Narciso a um triste fim, que não demorou muito a ocorrer. Um dia, ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. Apaixonado por si próprio, Narciso mergulhou os braços na água para abraçar aquela imagem que não parava de se esquivar. Torturado por esse desejo impossível, chorou e acabou por entender que era ele mesmo o objecto do seu amor. Ficou a contemplar a sua imagem até morrer. Ali permaneceu, paralisado de amor pela imagem aprisionada no espelho d'água. Não comia, não bebia para não se afastar por nem um segundo da imagem no lago. Nestas circunstâncias o jovem definhou e morreu. No local desabrochou uma flor roxa, que as ninfas batizaram de Narciso. Nas palavras de Ovídio, assim reagiu o jovem extasiado: "... o rosto fixo, absorvido com esse espetáculo, ele parece uma estátua de mármore de Paros. Deitado no solo, contempla dois astros, seus próprios olhos, e seus cabelos, dignos de Baco, dignos também de Apolo, suas faces imberbes, seu pescoço de marfim, sua boca encantadora e o rubor que colore a nívea brancura de sua pele. Admira tudo aquilo que suscita a própria admiração. Deseja a si mesmo. A si mesmo dedica seus próprios louvores. Ele mesmo inspira os ardores que sente. Ele é o elemento do fogo que ele próprio acende. E quantas vezes dirigiu beijos vãos à onda enganadora! Quantas vezes, para segurar seu pescoço ali refletido, inutilmente mergulhou os braços no meio das águas. Não sabe o que está vendo, mas o que vê excita-o e o mesmo erro que lhe engana os olhos acende-lhe a cobiça. Crédula criança, de que servem estes vãos esforços para possuir uma aparência fugitiva ? O objeto de teu desejo não existe. O objeto de teu amor, vira-te e o farás desaparecer. Esta sombra que vês é um reflexo de tua imagem. Não é nada em si mesma; foi contigo que ela apareceu, e persiste, e tua partida a dissiparia, se tivesses coragem de partir."
O Narcisismo: Na tradição grega, o termo narcisismo designa o amor de um individuo por si mesmo. Esta lenda, surgida provavelmente da superstição grega segundo a qual contemplar a própria imagem prenunciava má sorte, e esta personagem foram tornadas celebres por Ovídeo, na terceira parte das Metamorfoses. Transmitiu-se à cultura ocidental por intermédio dos autores renascentistas. Narcisismo, como termo, foi empregado pela primeira vez em 1887, pelo psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911), Binet queria descrever um certo tipo de fetichismo, que poderia designar uma atitude de vida sexual normal, quando privilegia uma parte do corpo do parceiro, ou uma perversão sexual, se a sua atenção se centra numa parte do corpo do parceiro ou objectos relacionados com o corpo, os quais assumem carácter exclusivo de excitação sexual ou mesmo de acto sexual. Em 1898 a expressão 'narcissus like' foi usada por Havelock Ellis, para descrever um comportamento perverso relacionado com o mito de Narciso, e que se caracterizava por uma vertente patológica de uma forma de amor voltada para a própria pessoa. No ano de 1899, num comentário sobre um artigo de Ellis, o criminologista Paul Nacke (1851-1913) introduzia o termo em alemão: 'Narzissmus', para significar, uma verdadeira perversão sexual.
Narcisismo e Psicanálise: Em Freud, este conceito surge pela primeira vez nas Notas psicanalíticas sobre um caso de paranóia (1911), precisamente no ano em que Binet faleceu. Aqui o narcisismo aparece como um ponto de fixação das psicoses, denominadas “neuroses narcísicas”. Freud em 1914 permitiu explicar a psicose como um retorno da libido sobre o sujeito, mas também um conceito clínico que descreve um conjunto de atitudes humanas dominadas por dois traços principais: o desinteresse pelo mundo exterior e uma imagem de si grandiosa.
No fenômeno libidinal, o narcisismo passou então a ocupar um lugar essencial na teoria do desenvolvimento sexual do ser humano. Freud teorizou que o narcisismo incluía o amor pelo próprio ego e autoengrandecimento, como tentativas de satisfazer necessidades infantis. Ele acreditava que todas as pessoas atravessavam uma fase normal de narcisismo infantil, e que o estudo do narcisismo patológico poderia ajudar a compreender a psicodinâmica do narcisismo em indivíduos normais. Originalmente, na criança, a libido não está exclusivamente virada para outros seres, como o pai ou a mãe. A criança toma também o seu próprio eu como objeto de amor. A esta tendência Freud designou narcisismo. O ego primitivo é considerado fraco, impotente em relação aos seus próprios instintos, bem como em relação ao mundo exterior. Ferenczi falou de uma primeira onipotência ilimitada que persiste enquanto não existe concepção dos objetos e limitada depois pela experiência da excitação sem controle e com movimentos incoordenados. Quando esses movimentos são percebidos como sendo sinal que exige mudança da situação, a criança pode experimentar esta série de eventos como uma "onipotência de movimentos." Quando certas experiências a obrigam à renúncia da crença em sua onipotência, a criança considera onipotente o adulto que já é considerado independente, e tenta através da introjeção, partilhar desta onipotência. O êxtase religioso, o patriotismo caracterizam-se pela participação do ego em algo inatingivelmente alto. São muitos os fenômenos sociais que se enraízam na promessa feita pelos "onipotentes" de que os impotentes terão participação terão participação passiva, desde que cumpram certas regras. Quando, por um processo regressivo, o narcisismo reaparece no adulto e este substitui o objecto sexual exterior pelo próprio corpo, trata-se de uma perversão, por outras palavras, é um comportamento pelo qual um individuo trata o próprio corpo da mesma maneira como se trata habitualmente o corpo de uma pessoa amada. Ser apaixonado por si mesmo, define-se assim o narcisismo, segundo o mito grego do jovem Narciso. O narcisismo não desaparece nunca, é recalcado, no homem normal. Corresponderia, no percurso do desenvolvimento individual, a um estádio intermediário entre o autoerotismo e a escolha de objecto. O investimento ulterior do objecto pela pulsão sexual, resultaria num deslocamento do Eu como objecto, dirigindo-se este a um objecto externo. Dado isto, Freud postula a existência simultânea e incisiva de uma oposição entre a libido do ego e a libido do objeto, o que o levou a considerar a hipótese de um movimento pendular entre as duas forças, de tal modo que se uma perde a outra ganha. Este equilíbrio desejado, se desequilibrado, leva, segundo a visão psicanalítica, a uma canalização excessiva de energia para um dos lados, ou seja, um investimento no Eu ou no Objecto, propiciando patologias futuras, pois nada aparece nas distorções patológicas que não repita um estado psíquico anterior, geralmente necessário ao desenvolvimento do individuo. O deslocamento do Eu para o objecto externo é entendido como um investimento aos objectos, porém a libido pode-se separar do objecto e retornar ao Eu. A própria libido normal pode regressar ao Eu! O sono representa esse estádio, em que a libido se desliga dos objetos e regressa ao Eu, e reproduz o estado perfeitamente feliz de narcisismo absoluto, que era o nosso estado na vida intrauterina. O estudo de Freud sobre o narcisismo, foi um grande passo no desenvolvimento da segunda tópica, ou seja, do modelo estrutural (ego, super-ego e id) da mente. Foi então retomada a questão da localização do narcisismo primário, que até aqui era contemporâneo da constituição do Ego, e que foi situado como o primeiro estado da vida – anterior, portanto, à constituição do Ego. Narcisismo e o Homossexualismo: A maior parte dos homossexuais não só apresenta amor edipiano pela mãe, tal qual os neuróticos, mas também, a intensidade da fixação materna é ainda mais acentuada. Há casos em que a afeição pela mãe é inconsciente, mas exposta com toda franqueza. Em grande número de homossexuais masculinos a identificação decisiva com a mãe fez-se com o aspecto de 'identificação com o agressor', isso ocorre nos meninos que temeram muito as mães. Mulheres homossexuais ativas que depois de se terem identificado com o pai, escolhem para objetos amorosos moças que representam, idealmente, a sua própria pessoa; comportam-se, então, com elas como desejariam ter sido tratadas pelo pai.
BIBLIOGRAFIA: BLEICHMAR, H. (1987) - O Narcisismo. Estudo sobre a enunciação e a gramática do inconsciente, Porto Alegre, Artes Médicas.
BLEICHMAR, C.; BLEICHMAR, N. (1992) – A psicanálise depois de Freud – Teoria e Clínica, Porto Alegre, Artmed Editora.
FREUD, S. – Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914), Rio de Janeiro, Imago, 1969.
FENICHEL, Otto - Teoria Psicanalítica das Neuroses
(Fatima Vieira - Psicóloga Clínica)