sábado, 17 de março de 2012

Ψ Retrospectiva: Carl Gustav Jung - Memórias, Sonhos e Reflexões

Ψ Não concordo quando dizem que sou um sábio ou um “iniciado” ...

- ... Nunca imaginei ser "aquele que cuida para que as cerejas tenham haste”, fico lá, de pé, admirando os recursos da natureza.

- Há uma bela lenda, de um rabino a quem um aluno, em visita, pergunta: “Rabbi, outrora havia homens que viam Deus face a face; por que não acontece mais isso?” O rabino respondeu: “Porque ninguém mais, hoje em dia, é capaz de inclinar-se suficientemente”.
É preciso, com efeito, curvar-se muito para beber no rio.

- A diferença entre a maioria dos homens e eu, reside no fato de que em mim as “paredes divisórias” são transparentes. Nos outros, elas são muitas vezes tão espessas, que lhes impedem a visão; eles pensam, por isso, que não há nada do outro lado.

- Sou capaz de perceber, até certo ponto, os processos que se desenvolvem no segundo plano; isso me dá segurança interior.

- Quem nada vê não tem segurança, não pode tirar conclusão alguma, ou não confia em suas conclusões.

- Ignoro o que determinou a minha faculdade de perceber o fluxo da vida.

- Talvez tenha sido o próprio inconsciente, talvez os meus sonhos precoces, que desde o início marcaram meu caminho.

- O conhecimento dos processos do segundo plano estabeleceu, muito cedo, minha relação com o mundo.

- Quando criança, sentia-me solitário e o sou ainda hoje, pois sei e devo dizer aos outros coisas que aparentemente não conhecem ou não querem conhecer.

- A solidão não significa a ausência de pessoas à nossa volta, mas sim o fato de não podermos comunicar-lhes as coisas que julgamos importantes, ou mostrar-lhes o valor de pensamentos que lhes parecem improváveis.

- Minha solidão começa com a experiência vivida em sonhos precoces e atinge seu ápice na época em que me confronto com o inconsciente.

- Quando alguém sabe mais do que os outros, torna-se solitário.

- Mas a solidão não significa, necessariamente, oposição à comunidade; ninguém sente mais profundamente a comunidade do que o solitário, e esta só floresce quando cada um se lembra de sua própria natureza, sem identificar-se com os outros.

- É importante que tenhamos um segredo e a intuição de algo incognoscível. Esse mistério dá à vida um tom impessoal e *"numinoso". ( *do latim "numen", divindade; adjetivo que qualifica algo que é sagrado ou divino).

- O inesperado e o inabitual fazem parte do mundo. Só então a vida é completa. Para mim, o mundo, desde o início, era infinitamente grande e inabarcável.

- Conheci todas as dificuldades possíveis para me afirmar, sustentando meus pensamentos.

- Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre o que decidia.

- Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as atitudes convencionais.

- Jamais podia deter-me no que obtinha.

- Precisava continuar, na tentativa de atingir minha visão.

- Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, só podiam constatar que eu prosseguia sem me deter.

- Ofendi muitas pessoas; assim que lhes percebia a incompreensão, elas me desinteressavam. Precisava continuar.

- À exceção dos meus doentes, não tinha paciência com os homens.

- Precisava seguir uma lei interior que me era imposta, sem liberdade de escolha.

- Naturalmente, nem sempre obedecia a ela.

- Como poderíamos viver sem cometermos incoerências?

- Em relação a alguns seres, era sempre próximo e presente, na medida em que mantínhamos um diálogo interior; mas podia ocorrer que, bruscamente, eu me afastasse, por sentir que nada mais havia que me ligasse a eles.

- Tinha que aceitar, penosamente, o fato de que continuassem lá, mesmo quando nada mais tinhama me dizer.

- Muitos despertaram em mim um sentimento de humanidade viva, mas só quando esta era visível no círculo mágico da psicologia; no instante seguinte, o projetor poderia afastar deles seus raios e nada mais restaria.

- Podia interessar-me intensamente por alguns seres, mas, desde que se tornavam translúcidos para mim, o encanto se quebrava. Fiz, assim, muitos inimigos.

- Mas, como toda personalidade criadora, não era livre, mas tomada e impelida pelo demônio interior.

- “Vergonhosamente, uma força arrebata-nos o coração. Pois todos os deuses exigem oferendas, E quando nos esquecemos de algum, Nada de bom acontecerá”, disse Hoelderlin.

- A falta de liberdade causava-me grande tristeza.

- Tinha às vezes a impressão de encontrar-me num campo de batalha: - Caíste por terra, meu amigo! Mas devo prosseguir, não posso, não posso parar! Pois “vergonhosamente uma força arrebata nosso coração.”

- Eu te amo, eu te amo, mas não posso ficar!
- No momento isso é dilacerante. Mas eu mesmo sou uma vítima, não posso ficar. Entretanto, o daimon urde as coisas de tal modo que é possível escapar à inconseqüência abençoada e, em oposição à flagrante “infidelidade”, permaneço totalmente fiel.

- Poderia talvez dizer: necessito das pessoas mais do que os outros, e, ao mesmo tempo, bem menos.

- Quando o *daimon (* em latim é dæmon = demônio), está em ação, sentimo-nos muito perto e muito longe. Só quando ele se cala é que podemos guardar uma medida intermediária.

- O demônio interior e o elemento criador se impuseram a mim de forma absoluta e brutal.

- As ações habituais que eu projetava passavam, geralmente, para o segundo plano, mas nem sempre ou em toda parte.

- Creio, entretanto, que sou conservador até a medula.

- Encho o cachimbo, usando o porta-tabaco de meu avô e guardo ainda seu bastão de alpinista ornado de casco de camelo, que ele trouxe de Pontresina, onde foi um dos primeiros veranistas.

- Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera.

- Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente.

- Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou.

- Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim.

- Em sua maioria dependeram do destino.

- Lamento muitas tolices, resultantes de minha teimosia, mas se não fossem elas não teria chegado à minha meta.

- Assim, pois, eu me sinto ao mesmo tempo satisfeitoe decepcionado. Decepcionado com os homens, e comigo mesmo.

- Em contacto com os homens vivi ocasiões maravilhosas e trabalhei mais do que eu mesmo esperava de mim. Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno vida e o fenômeno homem são demasiadamente grandes.

- À medida em que envelhecia, menos me compreendia e me reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo.

- Sinto-me espantado, decepcionado e satisfeito comigo.

- Sinto-me triste, acabrunhado, entusiasta.

- Sou tudo isso e não posso chegar a uma soma, a um resultado final.

- É para mim impossível constatar um valor ou um não-valor definitivos; não posso julgar a vida ou a mim mesmo.

- Não estou certo de nada. Não tenho mesmo, para dizer a verdade, nenhuma convicção definitiva – a respeito do que quer que seja.

- Sei apenas que nasci e que existo; experimento o sentimento de ser levado pelas coisas.

- Existo à base de algo que não conheço.

- Apesar de toda a incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser, tal como sou.

- O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina.

- Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento. Se o não-sentido prevalecesse de maneira absoluta, o aspecto racional da vida desapareceria gradualmente, com a evolução. Não parece ser isto o que ocorre.

- Como em toda questão metafisica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado.

- Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha.

- Quando Lao-Tse diz: “Todos os seres são claros, só eu sou turvo”, exprime o que sinto em, minha idade avançada. Lao-Tse é o exemplo do homem de sabedoria superior que viu e fez a experiência do valor e do não-valor, e que no fim da vida deseja voltar a seu próprio ser, no sentido eterno e incognoscível.

- O arquétipo do homem idoso que contemplou suficientemente a vida é eternamente verdadeiro; em todos os níveis da inteligência, esse tipo aparece e é idêntico, quer se trate de um velho camponês ou de um grande filósofo como Lao-Tse.

- Assim, a idade avançada é... uma limitação, um estreitamento.
E no entanto, acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem.

- Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas.

- Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo.
(Fatima Vieira - Psicóloga Clínica)

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