sábado, 14 de setembro de 2013

Ψ “É preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente”. (Freud)

A cena: ocorre no ambulatório de clínica geral de um serviço público, onde o médico recebe, para consulta, uma moça tímida provinciana de aspecto sofrido, limitando-se a queixar de uma dor que, embora profunda, ela não consegue localizar:
- Onde você sente essa dor? (pergunta-lhe o médico, impaciente, pensando na interminável fila de atendimentos que o aguardam no corredor do ambulatório).
- Não sei dizer, responde-lhe ela, desconcertada.
- Como não sabe? (replica-lhe o médico, visivelmente irritado). 
- Não sei onde dói, só sei que dói, e que dói muito…                                                                 (A Hora da Estrela, C. Lispector)

*Sobre a Depressão: Lacan (1966) refere como a "dor de existir" . 

- Sartre: Em "L'Âge de Raison" fala de uma ausência de sensibilidade que acomete o indivíduo incapaz de localizar no mundo, um valor que justifique a sua existência.

-  Maria Rita Kehl - a vida não faz nenhum sentido, o universo é indiferente às nossas dores e ninguém se preocupa tanto conosco a ponto de querer realmente nos salvar.

 - O filósofo Martin Heidegger, para quem a experiência do tédio (Langeweile), como aquilo que nos arrasta e nos deixa vazio, alimenta-se precisamente de sua ausência de localização (Heidegger, 1992).

 - Na prática psicológica lidamos com indivíduos que se mostram apáticos, desprovidos de intencionalidade, que se vêem incapazes de se localizarem no tédio em que se tornou a sua realidade

- Segundo Freud, a depressão revela a condição de desamparo da qual tentamos nos proteger construindo uma rede de vínculos ilusórios a que chamamos de amor e de sentido da vida, sem que se saiba o que isso quer dizer: “é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente”.

 - A psicanálise concede, desde Freud, sua margem de razão ao sujeito deprimido, na medida em que reconhece o valor de verdade que seu sofrimento revela e a sua condição de desamparo que lhes é inerente.

- Afora isso, a experiência analítica produz invariavelmente, sobre o paciente, o afeto de tristeza resultante do luto que ela provoca ao fazer tombar os ideais em que ele se alienava: ela expõe, em seu percurso, a frivolidade dos valores imaginários que sustentam a felicidade dos imbecis, ao confrontar o sujeito com sua condição primordial de desamparo.

- A psicanálise tem a dizer que não existe, em sua perspectiva, a depressão no singular, como não existe tampouco a dor no singular, para a medicina.

 - Existem sim a histeria, a psicose, a neurose obsessiva, a perversão; porém a depressão, não constitui por si só, para a doutrina psicanalítica, nenhum tipo de nosologia determinada. 

- Não acreditamos existir a depressão e a dor enquanto entidades clínicas autônomas, como quer fazer crer as classificações inspiradas no DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).

 - No séc. XIX, houve a valorização da dor pelo poeta.  E o discurso contemporâneo foge de tudo que não corresponde esteticamente as suas expectativas: o doente, o diferente, o portador de necessidades especiais, o obeso, o anoréxico, o idoso... sublima-se tudo, como se fossem deficiências a serem corrigidas em prol da ditadura do corpo perfeito e da perversa alegria.

 - A civilização que valoriza a competição e as conquistas do mercado não mais tolera seus deprimidos (Soller, 2005).

 - A psicanálise, desde Freud, em relação ao sujeito deprimido: reconhece o valor de verdade que seu sofrimento revela enquanto condição de desamparo que lhes é inerente. e questiona a frivolidade dos valores utópicos que sustentam a felicidade imaginária da maioria, pois confronta o sujeito com sua condição original de abandono, desamparo.

 - À propósito da depressão, no que a psicanálise enuncia talvez de mais fundamental: ainda que não reprove o deprimido, nem por isso deixa de formular um julgamento sobre depressão. É preciso não encerrá-lo numa abordagem puramente moralista das patologias depressivas, já há muito em desuso nas abordagens contemporâneas do sofrimento psíquico.

- Entretanto, Lacan diz, sem meias palavras, em 'Télévision' sobre o afeto depressivo: que resulta de uma covardia moral (lâcheté morale), ao qualificar a depressão como efeito de uma lâcheté, está antes se referindo a ela como efeito de uma frouxidão, de uma ausência de tensão necessária ao exercício lógico do pensamento. 

- Lacan refere em suas próprias palavras: A tristeza é qualificada de depressão, ao se lhe dar por suporte a alma, ou então a tensão psicológica.

 - A falta de vontade constante do sujeito depressivo corresponde, em certo sentido, a uma recusa ética de situar, através do pensamento, a estrutura simbólica que o determina no inconsciente.

 - F. Regnault nos convida a examinar, além disso, a propósito desse deixar-se levar do sujeito triste, o valor etimológico de um termo para designar o que hoje entendemos por depressão.

 - Trata-se do léxico latim acedia, o qual vem designar a tristeza a partir de um aspecto particular que nos interessa; do grego a-kedia significa, literalmente, não tomar cuidado, não zelar, deixar para lá, conforme se verifica na postura do sujeito depressivo que se coloca como se nada lhe dissesse respeito.

 - O depressivo assim pretende sofrer de um estado de alma, quando na verdade, explicita F. Regnault, ele comete uma falta do pensamento: ele se recusa a zelar pela tensão necessária a sua vontade, para situar logicamente a causa que o determina na estrutura.

 - Dessa ausência de tensão resulta, a dolorosa anestesia que acomete o sujeito deprimido, cujo campo perceptivo se dilata numa proliferação infinita de coisas insignificantes.

 - Um exemplo contemporâneo de experiência que acomete o sujeito insone, diante da televisão, conforme se lê no ensaio de T. Assunção: “O material de que está composta esta figura - como a modalidade mesma do zapping frenético na TV a cabo já anuncia -  é a superabundância monstruosamente variada de programas: circo ou feira eletrônico-feérica contendo inumerável repertório de jogos, entrevistas, shows...

 [...] Paradoxalmente, o signo que resume o efeito dessa pletora de variações é a repetição. No interior (ou mais precisamente na superfície) de um universo variado de imagens e falas regido pela pressão mercadológica de produzir novidades, está a triste sensação de mesmidade. Dos fragmentos assim recortados a memória que resta no dia seguinte é opaca e confusa e se assemelha estranhamente à memória de qualquer outra madrugada no zapping televisivo [...]. 

BIBLIOGRAFIA: ALQUIÉ, F. Leçons sur Spinoza. Paris: La Table Ronde, 2003.
ASSUNÇÃO, T. “Nota insone sobre a TV”. In Ensaios de Escola, R.J., Sete Letras, 2003.
DELEUZE, G. Spinoza – philosophie pratique. Paris: Minuit, 1981.
 FREUD, S. Über Wilde Psychoanalyse, Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, t. VIII. GUÉROULT,  “Obscurité, confusion, mutilation, inadéquation des idées”. In Spinoza, t. II (L’Âme). Paris: Aubier Montaigne, 1974 
HEIDEGGER, M. Les concepts fondamentaux de la métaphysique [1929-30] (trad. fr. D. Panis). Paris: Gallimard, 1992
 LACAN, J. “Kant avec Sade”, in Écrits. Paris: Seuil, 1966.
 LACAN, J. “Televisão”. In Outros escritos, R.J., Jorge Zahar, 2003.
MILLER, J.-A. Pièces détachées, curso inédito 2004/2005. 
REGNAULT, F. “Passions dantesques”. In La cause freudienne, no 58 : Maladies de l’époque. Paris: ECF – Navarin/Seuil, octobre, 2003.
SOLLER, C. “Esses deprimidos de quem não gostamos”. In O que Lacan dizia das mulheres. R.J.: Jorge Zahar, 2005. 
(Fatima Vieira - Psicóloga Clínica)

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